Eventos e momentos marco

Capítulo 6

Eventos e momentos marco

pra você que tá sem tempo...

O Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização nacional realizada durante o Abril Indígena, em Brasília, e a ocupação de espaços icônicos da capital federal foram os eventos/momentos-marco mais citados por públicos engajados/interessados.

O ATL foi descrito como case de mobilização pelas marchas, protestos e atos de resistência e como um evento de enorme importância para a conjunção interna do movimento indígena. A beleza e a diversidade dos cantos, danças e manifestações culturais espontâneas dos ATLs também foram destacados.

O alcance dos ATLs foi questionado por alguns dos entrevistados, que ainda o veem como muito voltado e pensado para os militantes e apoiadores do movimento indígena. Alguns dos entrevistados não o citaram espontaneamente ou disseram não conhecê-lo.

As Marchas das Mulheres Indígenas foram o segundo evento mais citado, especialmente no momento em que elas se juntam à Marcha das Margaridas. Em 2019, o evento reuniu 2.500 mulheres de mais de 113 povos indígenas de todas as regiões do Brasil.

A inserção dos indígenas na vida político-partidária, em particular, a eleição da deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) e a candidatura de Sônia Guajajara à vice-presidência em 2018, foi apontada como o evento mais importante dos últimos dez anos. “A participação de uma indígena na chapa presidencial é uma ruptura no imaginário brasileiro.”

A oposição à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu do povo Munduruku também estiveram entre os eventos mais lembrados. Diversos entrevistados apontaram que Belo Monte gerou campanhas de comunicação e alianças nacionais e internacionais inovadoras pela proteção da floresta, maior intolerância a grandes obras na Amazônia, ao menos por parte de um segmento da elite cultural do país, e uma oposição à obra, que ainda permanece ativa. “Belo Monte, que foi uma derrota, deixou a marca e ações de luta e resistência que permanecem até hoje, com a incansável Antonia Melo à frente do Movimento Xingu Vivo para Sempre, na fala sempre contundente da cacica Juma Xipaia, na constituição do Conselho Ribeirinho.”

A Constituição de 1988 foi recorrentemente lembrada como o grande marco e o alicerce das atuais mobilizações do movimento indígena. “A grande mudança é a Constituição de 1988, que promove a ressignificação dos direitos dessas populações, antes tuteladas pelo Estado.”

Eventos globais como as conferências climáticas e o vertiginoso crescimento do interesse internacional pelo Brasil foram os principais eventos/momentos-marco por públicos interessados, mas não engajados, por representantes do agronegócio, ONGs nacionais e internacionais e por correspondentes estrangeiros – "são momentos catalisadores de novas narrativas”.

Doadores e ONGs internacionais destacaram ainda a turnê de uma delegação de lideranças indígenas por 12 países da Europa em 2019 para denunciar as violações contra os povos indígenas e o meio ambiente e o assassinato de defensores ambientais, em especial Paulino Guajajara, também citado por outros segmentos no Brasil.

O Código Florestal apareceu nas entrevistas de um número bem menor de pessoas, especialmente os representantes do agronegócio, que o apontaram como um marco importante. Ambientalistas e representantes do agronegócio criticaram a baixa e inadequada implementação da lei.

Os públicos não engajados não mencionaram eventos específicos, com exceção dos jornalistas regionais, que citaram os jogos indígenas, e alguns políticos, que mencionaram a participação de indígenas em eventos e audiências públicas no Congresso Nacional. 

Ainda que a pergunta fosse sobre eventos e momentos-marco dos povos indígenas no Brasil e pelo fortalecimento de seus direitos, as menções às eleições e a Jair Bolsonaro acabaram, compreensivelmente, sendo inevitáveis devido à agenda escancaradamente anti-indígena do atual governo brasileiro. Mesmo entre os formadores de opinião dos públicos não engajados, o impacto do governo federal em exercício, abertamente contrário aos povos tradicionais, foi reconhecido e citado.

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“O grande evento da década, infelizmente, foi a eleição de Jair Bolsonaro.”

As eleições e o governo de Jair Bolsonaro acabaram, compreensivelmente, aparecendo em muitas respostas.

A agenda escancaradamente anti-indígena antes e pós eleições, o desmantelamento de políticas e órgãos públicos, a militarização de instituições como a Fundação Nacional do Índio (Funai), os níveis recordes do desmatamento, a conivência e o estímulo ao avanço da ilegalidade e criminalidade na Amazônia, a perseguição e a produção de fake news sobre os povos indígenas, a cooptação de lideranças, a atuação genocida durante a pandemia e a contínua violação de direitos, a produção de contranarrativas e a dramática situação político-econômica do país foram detalhadas por muitos dos indígenas e públicos engajados – mais em Dos muitos desafios.

“O problema de pensar na última década é que a gente está tão bolsonarizada, que só vem na cabeça as coisas desse estrupício e das coisas que estão acontecendo agora.”
(Jornalista)

Alguns entrevistados fizeram questão de localizar a desconstrução da agenda socioambiental a partir do governo de Dilma Rousseff.

“Bolsonaro abraça madeireiros, garimpeiros, grileiros, ele joga aberto, mas desde o governo Dilma a causa indígena perdeu todas.”
(Ativista)
“Bolsonaro, mas a origem é anterior a ele. Depois que a ministra Marina Silva deixa o governo, o que ela estava construindo por lá perde importância, e o governo Dilma vai de encontro, e não ao encontro da narrativa socioambientalista que começava a emergir ancorada em políticas públicas."
(Jornalista)

Um grande número de entrevistados fez questão de destacar a Constituição de 1988 como o grande marco histórico e alicerce das atuais mobilizações indígenas.

Legenda: Mobilização indígena em Brasília para acompanhar votação do julgamento da tese do marco temporal
Crédito: Mobilização Nacional Indígena
“A grande mudança é a Constituição de 1988, que promove a ressignificação dos direitos dessas populações, antes tuteladas pelo Estado. Por mais difícil que esteja a situação atual, foram aqueles anos anteriores que permitiram que hoje se possa dialogar e ter representatividade, foram as gerações passadas que iniciaram essa luta e inspiraram as gerações atuais a se manter nela.”
(ONG nacional)

A força, a organização e a coesão do movimento indígena

O Acampamento Terra Livre (ATL), “mobilização nacional para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das suas demandas”, foi o evento mais citado por indígenas e por públicos engajados/interessados. 

“O ATL, em todos os momentos. Ele não é um local só onde se dorme, onde se come, onde se produz política, mas tem os ritos, tem venda de artesanato, tem muitas trocas entre eles. É tudo muito interessante. Se eu for buscar na minha memória, tem muita coisa, e uma espontaneidade rara na cena política.”
(Jurista)
“O ATL é um exemplo de mobilização. Acho muito forte como imagem o nível de engajamento, a reunião de todas aquelas lideranças, a representação de Norte a Sul do país. É um evento de desobediência civil, mobilização e advocacy, com agenda política no Executivo e no Congresso. Isso é bem importante, pilar de movimento social. Acho muito emblemático essa virada de ir para cima, cobrar seus direitos na capital política do país. O evento também impulsionou a figura da Sônia (Guajajara), que cresceu muito em legitimidade e representatividade a partir dali."
(Ativista)
Crédito: Apib Comunicação
Crédito: Apib Comunicação
Crédito: Apib Comunicação
Crédito: Apib Comunicação
Crédito: Apib Comunicação
Crédito: Apib Comunicação
Legenda: Mensagem “Brasil Terra Indígena”, com 380 lâmpadas de LED, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF)
Crédito: Mídia Ninja

Diversos entrevistados descreveram o ATL como o que há atualmente de mais representativo da força, da organização e coesão do movimento indígena.

“Acho que os ATL têm sido os principais momentos também de conjunção interna do movimento indígena. As organizações que compõem a Apib merecem um reconhecimento por ter avançado e ampliado a visibilidade e a resistência do movimento.”
(Antropóloga)
“Eles conseguiram consolidar uma pauta única. Isso é algo muito importante e muito difícil para a sociedade civil, para os movimentos sociais, e os povos indígenas têm feito isso brilhantemente."
(ONG ambientalista)
“Acho que o ATL foi crescendo e foi ganhando relevância, uma capacidade muito significativa de agregar vozes. Talvez seja o espaço no calendário dos movimentos que melhor dialoga com a sociedade de uma maneira mais ampla, com o governo, com o Congresso. Ele gera essa energia e espaço únicos de diálogo e de convergência de pautas entre os indígenas."
(Antropóloga)
“Esse é o evento de maior importância da década. São anos consecutivos com milhares de indígenas em Brasília, com desdobramentos em todas as esferas. Os últimos foram digitais, remotos, mas a força e o impacto e os participantes permaneceram crescendo muito. E o Abril Indígena tem chegado à grande imprensa. Os índios com arco e flecha apontando para o Congresso, aquelas projeções no Congresso, todo mundo falou disso. É muito simbólico tudo o que vem de lá."
(Assessora de Comunicação)

A ocupação de espaços icônicos e de poder em Brasília, os confrontos com violência ou respostas não violentas à repressão policial e um conjunto de ações e imagens dos atos organizados, como os mais de 200 caixões deixados no lago do Congresso, as ruas de Brasília manchadas de vermelho em alusão ao sangue indígena e violência contra os povos indígenas foram descritos como os elementos mais marcantes dos ATL.

Crédito: Apib Comunicação
"Há estratégia, também, de pegar espaços, em princípio adversos, e ampliar justamente ali a luta. Numa reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida por Eduardo Cunha, os movimentos indígena e quilombola ocuparam a sessão. Ele mandou chamar a polícia, não saíram. Aí ele mandou desligar o ar-condicionado, não saíram. Enfim, são esses exemplos cotidianos de muita força e muita resistência que fazem avançar, ou não recuar, muito além do previsível para uma sociedade tão injusta e tão desigual nessas lutas.”
(Jurista)

A beleza e a diversidade dos cantos, danças e manifestações culturais espontâneas, elementos que fazem parte dos acampamentos, foram bastante elogiadas, mesmo por aqueles que não estiveram no evento presencialmente. Alguns desses momentos, inclusive, viralizam nas redes.

Também foram citadas pontualmente as versões dos ATL organizadas durante a pandemia, com pessoas admiradas com a diversidade de vozes e a qualidade de conteúdo e produção desses eventos. O ATL 2021, descrito como a “maior mobilização virtual dos povos indígenas do Brasil, com 25 dias de mobilização seguidos e mais de 60 atividades online”, teve como tema  ‘A nossa luta ainda é pela vida, não é apenas um vírus’.

“Elas podem curar o mundo”

A 1ª Marcha das Mulheres Indígenas foi o segundo evento mais citado, especialmente no momento em que as mulheres indígenas se juntam à Marcha das Margaridas. A marcha reuniu 2.500 mulheres de mais de 113 povos indígenas de todas as regiões do Brasil, em 2019, com o tema “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito!”.

“No Acampamento Terra Livre de 2019, as mulheres fizeram uma reunião e resolveram fazer a Marcha das Mulheres Indígenas. Elas foram discutindo isso em plenária. É muito diferente de como a nossa política opera, é um jeito de trabalhar em busca de consenso. Não é sobre ganhar, a maioria votou isso assim, vai ser isso aqui. Vai se construindo um consenso até chegar a uma decisão final. O primeiro consenso foi: ‘Queremos ter uma marcha das mulheres, com o apoio dos homens. Tem muitas mulheres lideranças e tem muitos temas que dizem respeito às mulheres.’ Depois elas definiram que gostariam que a marcha coincidisse com a Marcha das Margaridas. Então, a Marcha das Mulheres Indígenas começou três dias antes da Marcha das Margaridas e se juntou à Marcha das Margaridas. No dia da grande marcha pela Esplanada, eram mulheres e mais mulheres de tudo quanto é lugar no Brasil e indígenas de tudo quanto é lugar do Brasil. Elas fizeram um esforço danado para vir, tinha gente de tudo quanto é lugar. Muitas senhoras, mulheres que nunca tinham vindo para o acampamento. Muitas estavam ali pela primeira vez, e isso tinha muito a ver com a eleição do Bolsonaro. Uma noção muito clara de que a existência delas, de suas comunidades, estava em risco.”
(Antropóloga)
“Muitas mulheres venderam artesanatos para participar da Marcha das Mulheres Indígenas. Foi impressionante como elas conseguiram debater assuntos tensos, discutindo com diplomacia e leveza, sem dureza, como grandes líderes. Os não indígenas precisam disso: mais tato, sem rachaduras. Vejo nos ATL essa política bonita que eu gostaria que o Brasil tivesse.”
(Liderança indígena)
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja
Crédito: Apib Comunicação e Mídia Ninja

Não houve dúvidas sobre a importância desses eventos de mobilização em Brasília, mas as opiniões foram divididas e incertas sobre o alcance. Alguns dos doadores, cineastas, pesquisadores e jornalistas da grande imprensa ouvidos não conheciam o evento, ou não acreditam que tenha “furado bolhas”.

“Acho que ainda é um movimento pelos mesmos e para os mesmos. Meio encontro de turma. Minha mãe nunca vai saber sobre esse evento, e não vai haver um esforço nesse sentido, porque, infelizmente, tem gente que se vê como ‘proprietário de causa indígena’.”
(Cineasta)
“O Brasil toma pouco conhecimento, porque o que está em discussão ali não é muito noticiado, discutido com a sociedade.”
(ONG nacional)
“Eu só sei porque eu tenho meu irmão, meu sobrinho e minha cunhada que moram em Brasília. Mas não tem tido repercussão muito forte, não.”
(Jornalista)

Um dos jornalistas internacionais ouvidos pela pesquisa destacou que os ATLs tendem a gerar boas fotografias, mas não necessariamente pautas.

“Há muitos protestos ao redor do mundo. Acho que os ATLs são importantes, mas, internacionalmente, há muitos protestos por aí. Eu realmente não tenho, muitas vezes, contexto suficiente para cobrir o evento.”
(Correspondente internacional)

Os ATLs não foram citados por segmentos não engajados com o tema.

A inserção da(o)s indígenas na vida político-partidária

Além dos ATL, a inserção dos indígenas na vida político-partidária, em particular a eleição de Joênia Wapichana no Legislativo e a candidatura de Sônia Guajajara à vice-presidência em 2018, foram apontados como dois dos eventos mais importantes dos últimos dez anos – mais em Principais vozes.

Legenda: Deputada Joênia Wapichana (Rede-RR) na Câmara dos Deputados
Crédito: Joênia Wapichana
“Acho que a participação de uma indígena na chapa presidencial é uma ruptura no imaginário brasileiro.”
(Jornalista)
“Em 1500, iniciou-se um processo de morte e extermínio e, em 2018, temos uma indígena do povo Guajajara, que se vinculou à maior liderança jovem e de esquerda do país, candidata à vice-presidência, com uma pauta não só ambientalista, mas propondo novas formas de lidarmos com populações subalternizadas no país.”
(Cientista político)

A campanha de Sônia Guajajara foi lembrada não só pelo seu ineditismo, mas também pelos apoios construídos nesse processo com figuras públicas, movimentos sociais e artistas como Caetano Veloso e Maria Gadú.

Poucas pessoas citaram o número recorde de candidaturas indígenas e quilombolas eleitos nas últimas eleições municipais de 2020

“As mulheres quilombolas aqui em Pernambuco alcançaram muito esse lugar de conseguirem, de fato, se inserir na política institucional. Existe, obviamente, aquela questão da porcentagem de mulheres nos partidos políticos, que acaba sendo instrumentalizada. Mas vi nessa última eleição essa questão amadurecendo. Elas perceberam como isso estava sendo instrumentalizado, pensando em como se comportar em relação a isso e instrumentalizando também a situação.”
(Comunicóloga)
“Está acontecendo alguma coisa da semente do Juruna, com a Joênia lá no Congresso, os indígenas entrando cada vez mais fortemente na política municipal. Acho que tem aí um caminho longo e muito interessante pela frente.”
(Antropólogo)

A resistência a Belo Monte, que segue viva

A resistência à construção da hidrelétrica de Belo Monte também foi um dos momentos-marco mais citados por públicos engajados/interessados. A decisão de seguir adiante com a obra, apesar de todas as evidências, estudos e campanhas contrárias, foi apontada como central para entender o que acontece com a Amazônia hoje, sendo lembrada como um legado do PT e do governo de Dilma Rousseff.

“Belo Monte foi um grande momento. Foi quando os indígenas e os ribeirinhos tomaram para si a linha de frente de uma luta que não era só deles.”
(Jornalista)
“Já temos clareza da extensão absurda dos danos de Belo Monte, que representa uma catástrofe humanitária gigantesca. É um crime dos mais bárbaros e ali você vê o confronto muito claro de narrativas, que é o do desenvolvimentismo que passa o trator por cima de todos, com o argumento de que a obra é importante para gerar energia elétrica para o país, e dos ribeirinhos e indígenas como defensores de outros modos de vida, dos rios e das florestas.”
(Sociólogo)

Diversos entrevistados apontaram que Belo Monte gerou campanhas de comunicação e alianças nacionais e internacionais inovadoras pela proteção da floresta, uma maior intolerância a grandes obras na Amazônia, ao menos por parte de uma parte da elite cultural do país e, principalmente, uma oposição à obra que ainda permanece muito viva, ativa.

“Sou bem crítica ao governo Dilma porque essa agenda das grandes obras da Amazônia é muito conflitante com esse patrimônio que temos no Brasil, e um modelo que exclui a perspectiva das comunidades tradicionais. Morei três anos em Altamira, e vi o governo botar a máquina do Estado a favor de uma obra que violou continuamente os direitos das comunidades tradicionais.”
(ONG nacional)
Crédito: Xingu Vivo
“A construção de Belo Monte é uma regressão na política ambiental brasileira. A barragem, muito negativa para os direitos populacionais dos povos indígenas e dos ribeirinhos e para o meio ambiente, foi aprovada, verificando-se depois que sua potencialidade tinha sido enormemente inflada por interesses escusos. Ao mesmo tempo, é justamente ali que a sociedade começa a se articular de forma exemplar por meio do uso da mídia, das redes sociais e de campanhas de comunicação com figuras públicas, artistas e em parceria com organizações internacionais.”
(Cientista)
“Belo Monte, que foi uma derrota, deixou a marca e ações de luta e resistência que permanecem até hoje, com a incansável Antonia Melo à frente do Movimento Xingu Vivo para Sempre, na fala sempre contundente da cacica Juma Xipaia, na constituição do Conselho Ribeirinho.”
(ONG nacional)

São muitas, são muito diversas e estão muito vivas as ações de luta e resistência em oposição à hidrelétrica.

A organização Uma Gota no Oceano, um desdobramento do movimento que começou como uma campanha em linguagem irreverente, com a participação de vários artistas globais, questionando a construção da hidrelétrica de Belo Monte, acaba de completar 10 anos. ”Maria Altamira”, romance de Maria José Silveira, lançado em 2020, dedicado ao povo Yudjá e aos beiradeiros de Altamira, nos confronta com a questão: onde estávamos enquanto toda essa destruição se implantava? A performance tecno-xamânica "Altamira 2042", da artista Gabriela Carneiro da Cunha, que dá voz ao rio e às populações ribeirinhas que vivem as consequências da catástrofe provocada pela construção da hidrelétrica, esteve em extensa turnê pela Europa no fim de 2021. O não cumprimento de condicionantes por parte da Norte Energia foi alvo de uma audiência pública pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Vale, da Assembleia Legislativa do Pará, também no fim de 2021. Uma das mais importantes jornalistas do país, Eliane Brum, que se mudou para Altamira em 2017, por uma questão de coerência e por acreditar que a gente precisa deslocar os conceitos do que é centro e o que é periferia, acaba de lançar “Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo”. O filme “Volta Grande”, dirigido por Fábio Nascimento, sobre as famílias ribeirinhas que lutam para retornar ao seu território nas margens do rio Xingu, de onde foram expulsas pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

Créditos: Fabio Nascimento
Créditos: Editora Instante
Créditos: Gabriela Carneiro da Cunha
Créditos: Cia das Letras
Créditos: Gabriela Carneiro da Cunha

Algumas pessoas, entretanto, questionaram o que do processo foi realmente compreendido pela sociedade e não enxergaram muito mais do que as perdas à floresta e às populações locais.

“Acho que é um marco que pouca gente entende o que aconteceu ali. É uma história muito densa, muito longa, que envolve muita coisa. A gente teve uma cobertura midiática ruim a respeito, apesar de ter esses exemplos de coberturas feitas por jornais e jornalistas independentes, mas a gente sabe que eles têm uma baixa leitura na sociedade. Fica tudo muito dentro do mesmo público específico, os iniciados. Então, Belo Monte é um marco e, ao mesmo tempo, deveria ser mais marco, eu acho que ainda temos pouco no sentido de traduzir os danos gerados ali para o país.”
(Jornalista, pesquisadora)
“Hoje, os indígenas, lá no Xingu, vivem em reuniões, negociando compensações com empreendedor, a vida deles virou um inferno. Eles não têm tempo para transmitir conhecimento pros seus filhos mais, não têm peixe pra ensinar os filhos a pescar. Esse divórcio entre as gerações, que é provocado pelo contato com a sociedade envolvente, faz com que as novas gerações busquem outras coisas também, bens materiais, várias coisas. Acho que isso tem muito a ver com a volta à cena do Raoni, ele volta para dar um exemplo para as novas gerações.”
(Comunicadora)
“Apesar da resistência, eu só vejo perdas. Há lugares que vão virar ruínas. A área em que eu trabalhei inicialmente, a região de São Félix do Xingu e Altamira, no Xingu, a Terra Indígena Apyterewa, dos Parakanã, ali está um desastre completo, não sei se ali temos condições de recuperação.”
(Antropólogo)

Altamira, município próximo à usina, segue entre aqueles com as maiores taxas de desmatamento da Amazônia e um dos mais violentos do país.

Autodemarcação do território Munduruku e proteção do Tapajós

Ainda que por um menor número de pessoas entrevistadas e apenas por públicos engajados, o processo de autodemarcação da TI Sawré Muybu do povo Munduruku e a campanha contra usinas hidrelétricas no Tapajós, cuja luta ganhou novas dimensões e ainda mais visibilidade nos últimos anos devido ao agravamento das atividades e dos impactos do garimpo ilegal, também estiveram entre os momentos-marco mais citados.

Legenda: Mapeamento da Terra Indígena Sawré Muybu (PA)
Crédito: Coletivo Audiovisual Munduruku
“Os Munduruku autodemarcarem sua área foi de extrema importância e serviu, serve ainda, de exemplo para outros povos.”
(Liderança indígena)
“Acho que a campanha global que o Greenpeace fez com os Munduruku contra as hidrelétricas no rio Tapajós, com mais de 1 milhão de assinaturas, foi muito relevante. Ali também foram oferecidas as ferramentas para que eles começassem depois esse processo incrível de autodemarcação. E hoje outros povos estão adotando esse modelo de autodemarcação."
(Doador nacional)
“Com aquelas ocupações que os Munduruku promoveram nos canteiros de obras de Belo Monte, eles operaram uma inversão política muito inteligente. Havia um projeto de barrar o Tapajós, que é o rio sagrado deles, mas eles vão ocupar o Xingu. Aquilo  foi realmente um momento muito marcante. E toda a luta dos Munduruku contra as barragens no Tapajós é uma luta que, pode se dizer, foi vitoriosa. É uma luta que envolveu muitos embates, muita comunicação pública. E eles também são protagonistas de um outro marco histórico, que é a autodemarcação do território, um processo que acompanha essa luta contra as barragens, porque o fato do território não ser demarcado é que permitia ao governo fazer esse jogo sobre a legalidade da barragem. ‘Aqui não é território demarcado, não tem relatórios de identificação, é só uma reivindicação, então, a gente pode construir a barragem’, sem respeitar os ditames constitucionais e convencionais. E, então, eles resolvem não aguardar o governo e fazer a demarcação do seu território e acabaram fortalecendo sua organização e plantando sementes para a luta que eles estão tendo agora, contra as invasões de madeireiros e de garimpeiros. Acho que são momentos históricos dessa luta.”
(Assessora de Comunicação)
Legenda: Marcha final do Acampamento Terra Livre de 2018
Crédito: Mobilização Nacional Indígena
“Então, lá atrás, na luta contra as barragens, os Munduruku já estavam fortalecendo sua organização e plantando sementes para a luta que estão tendo agora.”
(Ativista)

Mais visibilidade, presença e apoios internacionais

Para públicos mais distantes da agenda e para as ONGs e públicos internacionais, as cúpulas do clima e a jornada de uma delegação indígena por 12 países da Europa em 2019 foram apresentadas como os eventos mais significativos.

“A turnê pela Europa foi uma ação realmente inovadora. A presença e a fala de várias lideranças em várias cidades europeias, em encontros com lideranças políticas, foi muito marcante.”
(Comunicadora)
“Há realmente um crescimento vertiginoso do interesse internacional sobre a questão ambiental e do clima, que, no caso do Brasil, acaba ajudando a agenda indígena, porque tem um governo que está lidando com as duas agendas da mesma forma. Eu quero bater no Bolsonaro, porque eu quero reduzir o desmatamento da Amazônia, e para bater em Bolsonaro eu vou levantar a bandeira da questão indígena também.”
(Economista)
“As discussões sobre o clima, como nas COPs, mas também outras, como a Semana do Clima de Nova York, são certamente relevantes. Atualmente, o papel dos povos indígenas e das comunidades tradicionais vem ganhando relevância como parte do debate sobre mitigação às mudanças climáticas e a proteção das florestas tropicais. Acho também que o crescente movimento de justiça ambiental é muito importante. E o Acordo de Escazú [primeiro instrumento internacional a proteger de forma explícita os chamados defensores ambientais], que entrou recentemente em vigor, é outro bom e excelente exemplo de uma estrutura política que não existia alguns anos atrás e que reconhece e defende a maior participação desses atores.”
(ONG internacional)
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
Legenda: Participação der representantes indígenas na COP26
Crédito: Mídia Ninja
“As narrativas têm uma construção lenta, exigem acumulação e coordenação ao longo de muitos anos. Mas há certamente eventos, momentos catalisadores. Acho que as COPs são eventos catalisadores porque os tomadores de decisão têm que, de alguma maneira, se relacionar com as demandas da sociedade civil, há grandes anúncios e coordenação por parte da sociedade civil de ação e reação. Então as COPs são sempre momentos muito interessantes. E também os meses precedendo as COPs, com eventos para definir a narrativa daquela COP em particular. Acho também que os ativistas do Extinction Rebellion, Fridays for Future e o Black Lives Matter são muito interessados nos questionamentos sobre as concepções ocidentais de desenvolvimento e são mais abertos e sensíveis a temas importantes para os povos indígenas.”
(ONG Internacional)

Um número menor de pessoas atribuiu à Cúpula dos Povos na Rio+20 o início de um processo de conexão mais consistente entre a agenda nacional e internacional, da ligação entre vários povos e movimentos distintos e da construção de agendas coletivas.

“Na Rio+20, conseguimos fortalecer nossa presença, porque geralmente a gente levava uma delegação pequena para eventos internacionais. Ali pudemos ter uma grande delegação indígena acompanhando, protestando e se posicionando sobre a questão climática. Isso foi um preparo para as outras COPs e para outros eventos que vieram na sequência.”
(Liderança indígena)

As cúpulas do clima e o Acordo de Paris também foram apresentados como eventos importantes por representantes do agronegócio e por públicos interessados, mas não necessariamente engajados.

“Não tem nada que me vem à mente a não ser as grandes conferências da ONU, que são de fato o momento em que o Brasil para e olha o tema.”
(Cientista política)

As entrevistas desta pesquisa foram conduzidas antes da COP26, que teve a maior delegação indígena do Brasil em uma conferência do clima, Txai Suruí como a única brasileira a discursar na abertura da conferência e o anúncio de US$ 1,7 bilhão do Reino Unido, Noruega, Alemanha, EUA, Países Baixos e 17 doadores privados norte-americanos para os povos indígenas, em reconhecimento ao seu papel como protetores do território e aliados na mitigação dos impactos da crise climática

Crédito: BBC News Brasil

Mais dados e repercussão dos assassinatos de lideranças

O público internacional também destacou os assassinatos de lideranças de povos indígenas e comunidades tradicionais, em especial o de Paulino Guajajara, caso que ganhou atenção da imprensa internacional e cuja imagem ainda circula em protestos pelos direitos dos povos indígenas.

Foi justamente nesta última década que levantamentos globais sobre as ameaças e assassinato dos chamados defensores ambientais se tornaram disponíveis, como o produzido pela Global Witness. É também nesse período que os relatórios sobre conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o relatório anual de violência contra os povos indígenas, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passaram a ter mais repercussão e seus dados usados fora do país.

“Aquilo que aconteceu com o Paulino Guajajara, que a gente vê e choca muito, mas ainda é muito distante das pessoas saberem o que podem fazer, não chega e não perpassa o imaginário de quem está na cidade.”
(ONG internacional)
“O Paulino Guajajara se tornou um ícone da luta indígena. Não é que ele fosse mais importante do que qualquer um dos outros povos indígenas que foram mortos e, infelizmente, foram muitos. Mas é bom que seu caso esteja recebendo muita atenção, pois isso tem dado mais visibilidade ao que se passa na Terra Indígena Arariboia. Infelizmente, todos os assassinos dos guardiões Guajajara estão livres. Há uma impunidade total no Brasil."
(ONG internacional)
Crédito: Reprodução Twitter

Vacina Parente e o enfrentamento à Covid-19

Alguns entrevistados fizeram questão de incluir entre os marcos o protagonismo e a articulação de organizações indígenas e apoiadores no enfrentamento à Covid-19, citando campanhas, ferramentas e denúncias contra o governo.

“A outra face da pandemia foi a intensificação da conexão virtual ilimitada entre povos, organizações, militantes e acadêmicos."
(Antropóloga)
“Enfrentamos agora o nosso maior desafio. Podemos ser dizimados pela Covid-19; povos inteiros correm o risco de desaparecer. O tratamento dado à pandemia no Brasil tem sido especialmente catastrófico para nós. Por essa razão, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) está tomando uma medida drástica: entramos no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para obrigar o governo a não nos deixar morrer.”
(Trecho do artigo de Eloy Terena publicado na Folha de São Paulo, em julho de 2020)

A ação liderada pelo advogado indígena Eloy Terena, com decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando o Executivo a cumprir com deveres constitucionais durante a Covid-19, foi descrita como “fantástica”, “histórica”. 

Segundo levantamento da Apib, já foram registrados mais de 60.000 casos de Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil e mais de 1.250 mortes. São mortes como a de Vovó Bernaldina, mestra indígena da cultura Macuxi, avó adotiva do artista Jaider Esbell; Aruká Juma, sobrevivente de um massacre e o último homem de seu povo; Aritana Yawalapiti, um dos principais líderes indígenas do Alto Xingu; Feliciano Lana, artista indígena do Alto Rio Negro; Paulinho Paiakan, uma das mais ativas lideranças na Constituinte e na luta pela demarcação da Terra Indígena Kayapó; e Carlos Terena, criador dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. 

Crédito: Reprodução Instagram

Código Florestal e o acirramento das disputas fundiárias

Um número bem menor de pessoas citou o Código Florestal, de 2012, como um marco, especialmente os representantes do agronegócio. Ainda que a partir de visões distintas, ambientalistas e representantes do agronegócio criticaram a baixa e inadequada implementação da lei.

“Acho que a disputa do Código Florestal foi um evento marco importante. A questão da Amazônia se reconfigura nesse momento. É como se as pessoas saíssem um pouco daquela visão de Amazônia pulmão do mundo e passassem a entender melhor a disputa fundiária, incluindo territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais, ainda não resolvida, como atores brasileiros.”
(Assessor de Comunicação)
"A aprovação do Código Florestal, moderno e super protecionista, foi um momento marco."
(Representante do agronegócio)
“Já estamos completando dez anos do Código Florestal e um conjunto de ferramentas que poderia ajudar a proteger territórios e enfrentar as questões relacionadas à sobreposição de áreas e conflitos fundiários não foi devidamente utilizado. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) poderia ter sido relevante para isso, mas, na minha visão, houve uma ineficiência programada dentro de um grande acordo político que foi retardando e empurrando com a barriga a consolidação das obrigações da lei.”
(Empreendedor socioambiental)
Legenda: Manifestantes fazem protesto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, contra a aprovação do 'novo' Código Florestal
Crédito: Wilson Dias/Agência Brasil

Jogos indígenas, atos políticos, contatos raros ou inexistentes

Alguns dos entrevistados que estamos chamando de interessados, mas não engajados, não souberam especificar eventos e marcos específicos da última década.

“Fui ao Festival Multiétnico, na Chapada dos Veadeiros, mas achei muito deprimente. As pessoas engordaram muito, mudou toda a alimentação, tem muito açúcar. A mudança de alimentação causa muito essa desvalorização do saber tradicional.”
(Doadora nacional)
“Não sei dizer, pensar em eventos marco. Tive contatos muito raros, muito circunstanciais com indígenas."
(Cientista política)
“Desculpa, eu acho que eu não saberia dizer um evento específico, não.”
(Jornalista)

Entre os públicos não engajados/interessados, os políticos e os jornalistas regionais foram os únicos que mencionaram a participação e a organização de eventos com representantes indígenas.

Alguns dos políticos chegaram a relatar a participação de lideranças indígenas em eventos e audiências públicas no Congresso Nacional e os jornalistas regionais destacaram a importância dos jogos esportivos indígenas. Muitos deles já cobriram esses eventos e acreditam que são bons momentos para gerar notícias e divulgar informações para a população geral.

Crédito: Mídia Ninja
Crédito: Mídia Ninja
Crédito: Mídia Ninja
“A gente percebe que eles participam mais de discussões políticas e de atos políticos em si pela defesa da terra e da memória deles. Percebo que eles são mais ativos hoje.”
(Jornalista, Pará)
“No Senado, os povos indígenas participam na Comissão de Assuntos Sociais e na Comissão de Meio Ambiente.”
(Senador, MS)

Os economistas e lideranças empresariais que costumam participar de eventos, alguns dos quais ligados à agenda ambiental, apontaram que mesmo nesses momentos não encontram, na maioria das vezes, a presença de representantes indígenas.

A ideia de representatividade para esses segmentos tende a girar em torno apenas da ocupação de espaços institucionalizados de poder, e por isso essa impressão de distanciamento dos indígenas.

Também entre os formadores de opinião de públicos não engajados, o impacto do governo federal em exercício, abertamente contrário aos povos tradicionais, foi reconhecido e citado.

“Nos últimos anos do governo Bolsonaro, há um processo de perdas significativas que a gente vê num grau mais claro, explícito, para as minorias tradicionais. Já tinham dificuldade em conseguir conciliar a sua sobrevivência, sua existência em áreas que têm um peso crescente do agronegócio e agora ainda mais com um presidente e um governo que é francamente contrário à agenda indígena. Se já era difícil, está muito pior.”
(Economista)

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